saídas da casca

As galinhas andavam dispersas. Orgulhosamente rebeldes em relação à voz dos que pretendiam ser seus donos, mas secretamente amarguradas por se sentirem sozinhas nesse seu viver. Era, logicamente, preciso satisfazer todas as necessidades que a sua condição de galináceo impunha, picar o chão, espolinhar, esgravatar terra. E era, para elas, igualmente importante, sempre que sobrava tempo e energia, rejeitar a submissão e lançar umas bicadas ao carcereiro. Se, ao menos, houvesse mais que, como eu, sentissem vómitos à medida que iam sabendo mais sobre o mundo..., pensariam.

Foi sobretudo por isso que aquele dia foi mágico. Tantas caras nunca dantes vistas de outras que também apontavam o seu bico, as suas armas desafiadoras, ao alvo que a sua sensibilidade própria indicava. Algumas tinham experiências de encontros anteriores onde o carcarejar se tinha sobreposto à ânsia de mudança. Aqui, com a tal magia que todas terão sentido, isso não tinha como acontecer. Ressalve-se, claro, que o carcarejar, aquilo que os humanos traduzem por falar, é a base sustentatória das investidas das galinhas rebeldes. Sem ele, não se chegará longe. O que, no fim-de-semana de 14 a 16 de Dezembro de 2007, ficou patente é que não tem, necessariamente, que se começar por esse lado. Havia, naquele segundo andar da CasaViva, ganas de picar. E começou-se antes por aí, ou não estivéssemos no ninho dessa outra ave insubmissa, o Pica Miolos. Nessa mesma noite, a primeira, umas poucas atreveram-se a, de forma propositadamente agradável à vista, lançar o seu grito contra a precarização da vida e a descartabilização dos indivíduos. Nem que fosse só por isso, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Foi bom ver que sábado trazia, de novo, sol. O pequeno-almoço prolongou-se por várias horas, como sempre acontece quando a refeição, entendida como muito mais do que a simples comida que a compõe, sabe bem. Durante esse tempo, ultimaram-se alguns pormenores e discutiram-se, de forma mais concreta, as acções que se tinham aflorado na conversa da noite anterior.

Não seriam mais do que 13h30 quando, das portas da CasaViva, saíram cerca de trinta, com três carrinhos de compras e o grito mais ensurdecedor que o capitalismo pode ouvir, o da ausência de preço. Estava-se, não o esqueçamos, em plena época natalícia e, ao mesmo tempo que três ou quatro perguntavam aos passantes qual a primeira coisa que lhes vinha à cabeça quando ouviam a palavra transgénicos, uma loja livre, três carrinhos de supermercado cheios de produtos gratuitos, percorria demoradamente a Rua de Sta. Catarina, do Marquês à Batalha. O impacto foi enorme. Muitas levaram coisas, várias conversaram sobre as motivações de tão bizarro acontecimento, uma ou outra terão encontrado ali uma prenda de natal que, repare-se, deixaram de comprar. Nem que fosse só por este último pormenor, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Chegadas à Batalha, as galinhas metamorfosearam-se. Os pregões mudaram com a roupa, os carrinhos da Loja Livre foram camuflados e apareceu, de repente, uma mancha de empresários que lançavam o PIDE (Partido Independente de Defesa do Empresariado). As mesmas que tinham descido Sta. Catarina, subiam-na agora, berrando por salários mais baixos, apelando à submissão a todos os ditames das empresas. Um flyer que acompanhava a marcha serviu para que quem andasse pela rua naquele sábado levasse para casa uma explicação sobre o que acabara de presenciar. Talvez algumas compreendessem o que se pretendia e, quiçá, uma tenha concordado. Nem que fosse só por isso, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

De volta a Casa, decidiu-se, mesmo que nem se tenha falado disso, sentar, relaxar, tomar um café, fumar um e ouvir uma musiquinha. Mais tarde, quando a noite começasse a cair, sair-se-ia de novo, desta vez com uma mega piroca, ou não fossem também estes os dias que se seguiam aos da assinatura do Tratado de Lisboa e da grande masturbação nacional que esse baptismo provocou. Soubessem os portugueses o que significa verdadeiramente o tratado e talvez não andassem com o ego tão inchado por ter o nome duma cidade do seu país. A estupefacção dos transeuntes, se já tinha sido visível nas acções anteriores, era, nesta, brutal. O que faria um pénis de dois metros a passear-se, em cima dum andor, por toda aquela distância que separa o Marquês dos Aliados? Ah! É o Tratado de Lisboa!, chegaram a afirmar alguns passantes, depois de verem as pancartas (“O Tratado tira-nos mais direitos laborais e liberdades civis, mas é NOSSO!”, ou “Nem sabemos o que diz o Tratado de Lisboa, mas é NOSSO!”), como se essa explicação lhes bastasse. Hoje vimos uma piça gigante por causa do Tratado de Lisboa, terão dito, sem mais explicações, em casa ou no café. Nem que fosse só pela dúvida que se lançou entre quem viu tal procissão, pela necessidade interior que terão sentido para perceber o que se estava a passar, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Desceria o falo as ruas da cidade quando, na Baixa, se acendeu a árvore que, com o patrocínio da câmara municipal do Porto, publicitava uma instituição financeira em terrenos públicos. Por razões que a razão conhecerá, esse objecto, também ele fálico, atraía multidões àquela zona. Foi no meio dessa mole que a piroca se metamorfoseou em suporte de estrela de natal que encimava um presépio onde o menino que se adorava era o €, como símbolo de todos os conceitos que se podem dar à noção de dinheiro. Com personagens vestidos a rigor, essa pequena performance acabaria por chamar a atenção de muita gente, incluindo alguns polícias que nunca chegaram a perceber que o que ali se passava era exactamente aquilo que eles, a julgar pelas suas perguntas, não queriam que acontecesse: uma manifestação política. Um flyer ajudava a que se conseguisse chegar até àqueles que decidissem deixar para mais tarde o parar para pensar. Afastados, pela ignorância, os únicos que podiam chatear, soltaram-se as gargantas ao som de poemas críticos da nova rede da STCP que alguém se lembrara de escrever e musicar. Nem que fosse só pelo caricato episódio com a polícia ou por esse momento de quebra colectiva de vergonhas que foi o das Janeiras Sociais, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Nessa noite, alguém fez o jantar, alguém lavou casas de banho, alguém varreu algumas salas, cada uma lavou o seu prato, a autogestão adquiria novos sentidos e deixava a sua condição de utopia através da prática. Imperfeita, é certo, ou não vivêssemos em galinheiros onde se castra tudo o que vai nessa direcção. Entre tudo isto, e todas juntas, puderam maravilhar-nos com o humor e a qualidade de Pedro::Diana e de Thomas Bakk.

Não foi difícil, portanto, que, no domingo, acordassem com o sentimento de que cada uma delas estava mais forte, mais consciente, mais disposta a colocar a sua asa sobre o corpo de qualquer outra que pudesse necessitar de ânimo em alturas em que ele se desvaneça. Não era o caso naquele dia. Não depois de um sábado daqueles. Estavam cansadas, é certo e pouco estranho, principalmente para aquelas que tinham aproveitado as primeiras horas de domingo para berrar por espaço e prioridade para os transportes não poluentes. O pequeno-almoço demorou ainda mais do que o anterior, como se houvesse uma necessidade qualquer de estarem juntas, calmas, aconchegadas.

O Sol já estava na sua curva descendente, já se tinha abortado mais do que uma acção que uma ou outra tinham preparado, quando as portas da CasaViva se voltaram a abrir para que todas saíssem em direcção ao Jardim das Virtudes, esse espaço amplo e lindíssimo que a incúria camarária tem votado ao abandono, policiado para que ninguém entre, de forma, talvez, a que a desabituação do seu usufruto não provoque saudades quando lá se construir alguma coisa. A decisão sobre o que lá se faria foi sendo tomada pelo caminho e, quando lá se chegou, saltaram-se muros e portões, estendeu-se a toalha, partilhou-se comida e não se quis sair sem deixar bem visível que se tinha lá estado a reapropriar um espaço subtraído à comunidade e que não se concordava com as prioridades do edil. Nenhuma se esquecerá, nos momentos que antecederam a invasão, do que disse aquela que passava por ali e que, sendo da zona, as animou a entrar, confessando já ter feito o mesmo quando precisou daquele espaço. Nem que fosse por ver como o activismo de cidadania é praticado pelas pessoas mais insuspeitas, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Voltaram extenuadas. Algumas, mais resistentes, ainda encontraram forças para largar balões com mensagens anti-consumismo numa das suas mais afamadas catedrais. Uma acção que, infelizmente, algumas já não conseguiram acompanhar, mas que todas puderam conhecer, nem que fosse por vias travessas, como sejam os relatos de alguém ou aquele vídeo delicioso que acaba logo a seguir a ver-se aquela moçoila, feliz por ter conseguido tornar-se proprietária dum dos balões que caíam, lançados sabe-se lá por quem, a dirigir-se à mãe Oh Mãe, mãe... Preenche o teu vazio com compras. Nem que fosse só por esta imagem tinha valido a penas. Mas terá sido por muito mais.

Domingo, para além dos sabores trazidos de Setúbal, acabou ao som de Abdul Moimême (sax), Henrique Fernandes (contrabaixo) e Gustavo Costa (percussão), com o que se poderá referir como a súmula do fim-de-semana, ou a demonstração da validade dum encontro fortuito em que, a uma base pré-definida, se juntam os ingredientes mágicos da espontaneidade e do improviso, de forma a conseguir-se prazer e resultados concretos.


As galinhas estiveram juntas. Voltariam cada uma a seu canto, mas já sabiam que não esgravatavam sozinhas. Melhor, tinham gostado de esgravatar juntas. E pior não pode temer o carcereiro.

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